Bones e a desvalorização do nosso próprio trabalho

27 maio 2017 —


Em primeiro lugar, gostaria de dizer que gosto muito do meu trabalho. De verdade. Gosto do ambiente, das pessoas, das tarefas que são de minha responsabilidade. Simplesmente tudo me agrada, e eu não poderia desejar um emprego melhor.

Porém, contudo, no entanto, todavia, tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, e as coisas já não parecem mais tão legais assim. O dia a dia é cansativo, de fato, e a rotina nos faz perceber nosso trabalho como uma série de etapas sem sentido. Começamos uma nova tarefa e nem sequer sabemos porquê estamos ali, fazendo aquilo. Já se tornou automático e rotineiro. Uma parte do dia a dia para a qual a gente não liga mais.

É aí a gente começa a se perguntar: o que diabos eu tô fazendo? Tem algum sentido nisso tudo? Por quê eu faço o que faço? Existe algum ganho na sociedade pelo meu trabalho? Será que eu realmente sou um bom trabalhador? Será que alguma coisa que eu faço tem algum valor?

Complicado. É tudo sempre complicado quando a gente para de ver as coisas como elas são e passa a vê-las pelo que o nosso costume nos faz achar. Só porque aquilo é rotineiro e, muitas vezes, mecânico, não significa que é sem valor.

Eu trabalho com marketing de conteúdo e minha principal tarefa é, basicamente, pesquisar muito sobre um assunto, pra escrever o melhor texto possível e sanar todas as dúvidas que as pessoas possam ter sobre o assunto. Esse não é um trabalho fácil, mas muitas vezes acabo caindo no bom e velho “eu não valho nada” pensando que tudo que eu faço é simplesmente copiar coisas que já existem por aí — o que não é bem verdade, uma vez que, apesar de eu precisar tirar as informações de algum lugar, meus textos acabam sendo únicos e não se encontra nada parecido em nenhum lugar. Modéstia a parte, eu arraso.

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Graças às aulas de anatomia na faculdade, descobri uma nova paixão: osteologia. Pra quem não sabe, essa palavra significa “estudo dos ossos”. Percebi que eles são uma das coisas mais valiosas que nós temos no corpo e que, se não fossem eles, o resto do corpo não teria função alguma.

O fato é que: um dia estava eu feliz e saltitante (não necessariamente, pois me encontrava deitada em minha cama), procurando algo para assistir no Netflix. Eis que vi um tal de “Bones”. Pra quem não sabe, bones significa ossos. Como nessa época eu já estava apaixonada por osso (cada dia mais me sinto uma cadela, mas okay), resolvi dar um play.

A série fala sobre Temperance Brennan, uma antropóloga forense que busca solucionar crimes através dos restos mortais, geralmente os ossos. Bem intuitivo, né? Mas não estou aqui para falar da Temperance, e sim de sua colega de trabalho: Angela Montenegro.


Angela é uma artista, talvez a pessoa mais sensata da série inteira, que estuda os restos mortais e, junto com os dados providos pela Temperance, busca recriar os rostos das pessoas. Em um dado episódio, ela começa a questionar seu próprio trabalho. Passa a não ver tanto o valor daquilo, pois não é uma cientista, como todos os seus colegas de trabalho, e sim uma mera artista que foi parar ali pela ajuda de sua amiga.

A personagem passa por uma crise em relação ao seu trabalho e, no contexto da série, até mesmo de identidade, pois não se vê como tão colaborativa para a sociedade quanto os outros. Angela fica tão mal que cogita pedir as contas do instituto de pesquisa.

Conforme o episódio progride, coisas vão acontecendo (se quiserem saber, assistam, porque eu realmente não lembro) e, no final, ela fala com seu chefe sobre essa insatisfação. Eis que ela ouve o seguinte:
“You are the best of us, Miss Montenegro. You discern humanity in the wreck of a ruined human body. You give victims back their faces, their identities. You remind us all of why we're here in the first place - because we treasure human life.”
Enquanto ela mesma via seu trabalho como pouca bosta, o resto do time achava ele de extrema importância, porque era ela quem dava o caráter humano à tudo que era feito no instituto. Era ela quem, de fato, via a vítima, mesmo sob as ruínas da decomposição.

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Talvez nem todo mundo tem o melhor trabalho do mundo. Certamente, muita gente faz muita coisa que não gosta. Mas uma coisa é fato: se o seu trabalho não valesse nada, ele não seria um trabalho. Ninguém pagaria pra não ter nada em troca. É assim que as coisas funcionam, é assim que o mundo roda.

Às vezes a gente não faz lá aquele mega trampo pra resolver um baita problemão, aquilo que vai salvar a empresa de qualquer crise, aquilo que vai inovar o mercado e jogar novas cores na tela da vida. Às vezes a gente só pesquisa, junta as informações importantes, e sana a dúvida de diversas pessoas.

Pouco tempo atrás meu namorado estava com uma dúvida e não encontrava a resposta em nenhum lugar. Até que, por fim, resolveu procurar no portal para o qual eu escrevo, e lá estava a resposta da dúvida dele. Se isso aconteceu tão perto de mim, imagina o quanto não acontece com outras pessoas?

O que eu escrevo, por mais que seja “automático”, por mais que não seja algo que um baita especialista escreveria, ajuda outras pessoas a entenderem melhor as coisas, a terem suas dúvidas tiradas, a dormirem bem à noite sem ficar com aquele ponto de interrogação enchendo o saco.

Nada que eu faço é, de fato, algo novo, mas é tão valioso quanto.

Sinto que a gente se desvaloriza demais. Que a gente se acostuma e acha que não é mais nada quando, pras outras pessoas, pode ser tudo. Não devemos nos esquecer nunca disso. Não vou dizer que a rotina vai deixar de ser rotina, que as coisas vão voltar a ser tão excitantes quanto eram antes, porque não vão. Mas creio que, mudando um pouco a maneira que a gente vê as coisas, nós mesmos podemos melhorar o nosso dia a dia, pelo menos um pouquinho que seja.

Quando foi que eu parei de ver meu trabalho como o que ele realmente é? Como é que eu faço pra recuperar essa visão e nunca mais deixar ela ir embora? Como que a gente faz pra voltar a se valorizar, a ver nosso trabalho como algo de valor? Não sei, talvez seja algo mais interno, talvez demore algum tempo. Ou talvez a gente só precise ouvir a descrição do nosso trabalho um profundo tom afro-americano.

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